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Medicina em quadrinhos

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- 10/01/2020

A paixão pelo desenho e todas as suas possibilidades foi despertada em Solon Maia por um comercial de lápis de cores. Residente em Anestesiologia, plantonista em UTIs e prontos-socorros e cartunista, Maia acredita que desenhar não é um dom e que seus 35 anos se dedicando a essa arte fizeram dele quem é hoje.

Criador do site Meus Nervos, no ar desde 2011, com tirinhas que falam sobre seu cotidiano profissional e problemas enfrentados na prática médica, o residente procura atender seus pacientes da melhor forma possível para que não o associem ao médico escrachado do blog. Em entrevista ao Universo DOC, ele conta sobre as dores e alegrias de usar sua vivência profissional como inspiração para seus quadrinhos.

Universo DOC: Como começou a desenhar?

Solon Maia: Quando pequeno desenhava objetos, pessoas, árvores, animais etc. Depois passei para a fase da Turma da Mônica e Tio Patinhas. Logo me interessei por Hulk, Superman, Thor, He-man, Transformers. A partir daí eu desenhava tudo que se possa imaginar, influenciado pelo traço dos mais diversos quadrinistas (Maurício de Souza, Bill Waterson e Quino, por exemplo).

UD: O que te deu essa visão mais crítica das coisas?

SM: Acho que foi um conjunto de fatores. A educação que meus pais me deram foi muito rígida. Acabei desenvolvendo tendências perfeccionistas: tudo que havia de errado a minha volta me incomodava demais! Hoje reconheço esse meu lado e sou muito mais tranquilo, mas ainda ficou muito do “eu” de antigamente.

UD: E o interesse pela Medicina, como aconteceu?

SM: De forma geral, a Medicina é escolhida por ser uma profissão interessante, bonita e com boas possibilidades de retorno pessoal e financeiro. Embora amasse desenhar desde sempre, nunca vi grandes chances profissionais sendo quadrinista, então optei por escolher uma profissão mais tradicional e segura. Hoje, posso afirmar que amo a Medicina como arte e ciência, mas não posso dizer o mesmo sobre a área como profissão. São muitas as dificuldades quando se é médico no Brasil. Minha esperança é a Anestesiologia. Torço para que tudo dê certo nessa nova empreitada!

UD: Como surgiu a ideia de montar um blog que unisse esses dois universos?

SM: Trabalhei em Programas de Saúde da Família atendendo em zona rural, fui plantonista de prontos-socorros de cidades do interior e enfrentei anos de problemas diversos nas unidades de saúde de Goiânia. Exploração, condições péssimas de trabalho, salários atrasados etc. Tudo isso resultou em uma enorme frustração – estresse, depressão, burnout e raiva. Enquanto não conseguia mudar aquela situação, eu precisava, pelo menos, extravasar todos aqueles sentimentos, aí tive a ideia de usar uma antiga paixão para esse fim: as histórias em quadrinhos. Em 2011, criei o blog para desabafar, tentar fazer a minha parte em defesa da profissão e para dar voz à classe médica.

 Arte de Solon Maia

UD: Suas tirinhas trazem temas do universo médico, alguns até polêmicos. Alguma vez você encontrou problemas por essa exposição?

SM: Já tive vários problemas, desde denúncias no Facebook até ao CRM. Apesar das pequenas dores de cabeça, nunca tive consequências maiores.

UD: Quanto à repercussão do blog, como seus colegas médicos reagem? E a reação dos pacientes?

SM: Meus colegas, na maioria das vezes, adoram minhas tiras. Chegam a mim com elogios, dizendo que se identificaram ou que vivenciaram situação parecida. Muitos dizem que o blog funciona como um desabafo, como se fossem eles falando o que estava engasgado. Isso me deixa realmente muito contente. Quanto aos pacientes, ou eles têm vergonha ou medo de comentar algo, ou não conhecem o blog. Que eu me lembre, apenas dois mencionaram conhecer o Meus Nervos, e ambos elogiaram.

UD: De alguma forma o cartum te ajuda na sua carreira médica? E o inverso?

SM: Acho que o cartunismo mais atrapalha do que ajuda. Meus quadrinhos revelam minha maneira de pensar, minha postura e meu temperamento. Eles mostram que não sou tolerante com coisas erradas e que não tenho medo de dizer o que penso. Qualquer empregador que não simpatize com minhas ideias e com o conteúdo do blog irá hesitar em me contratar. É possível que temam o impacto que minha arte possa ter diante dos pacientes ou do hospital que me contratou.

UD: Em algum momento você sentiu a necessidade de escolher entre as duas carreiras? Como foi?

SM: Houve uma época em que eu estava muito desgostoso com a Medicina. Pensei em desistir algumas vezes e tentar me bandear para o lado dos quadrinhos, mas as perspectivas do que a Anestesiologia poderia me proporcionar acabaram me mantendo na trilha da Medicina.

UD: Como você concilia a residência em Anestesiologia, os plantões e suas atividades como cartunista?

SM: Eu trabalho de segunda a sábado e quase nunca desenho nesses dias. Reservo o meu pouco tempo livre para estudar. Meus desenhos geralmente são feitos no domingo de manhã. Acordo cedo e fico rabiscando até a hora do almoço. O resto do dia tiro para a minha família e amigos. Com isso, tenho produzido, em média, uma tira a cada 15 dias.